15 de jan. de 2012

A ARQUEOLOGIA DO SABER GEOCARTOGRÁFICO

Prof. Dr. Roberto Monteiro de Oliveira

Os estudos disponíveis da pré-história e, especificamente, da arqueologia, efetuados em quase todas as partes do mundo, nos permitem afirmar que os povos primitivos possuíam bem desenvolvido o sentido da orientação, tendo, portanto, a capacidade de distinguir as principais direções dos seus horizontes. Basicamente usavam como referência os acidentes naturais, e até mesmo as observações dos astros. Além da orientação, os povos mostravam capacidade de estimar distâncias entre os lugares, embora muitas vezes, cada um a seu modo peculiar, se reportasse mais a unidades temporais do que espaciais. Como ainda hoje se faz no interior da Amazônia: dois dias de canoa, dois dias rio abaixo, três dias rio acima e etc..

Quaisquer que tenham sido os motivos, de um modo geral as culturas primitivas, antes mesmo de atingirem a fase da escrita, registraram em pedras, em casca de árvores, no chão, em peles de animais, etc., informações, conceitos e fatos através de sinais ou símbolos necessários à sobrevivência humana.

Aprofundando um pouco a reflexão sobre a formação do saber das culturas primitivas, percebe-se logo que os conhecimentos referentes ao meio ambiente, conhecimentos geográficos, aparecem intimamente associados à cartografia. De fato, uma análise do mais antigo mapa que se conhece até hoje, uma placa de barro cozido descoberta na cidade de Ga-Sur, ao norte da Babilônia (2500 a.C.), representa um vale de um rio com montanhas em cada lado, rio que vai desembocar em um lago ou mar. Deve-se salientar que este mapa foi orientado, como ainda os atuais o são, pelos pontos cardeais, o norte, o leste e o oeste aparecem indicados por círculos com inscrições.

Outro importante exemplo de como a cartografia primitiva está intrinsecamente unida aos propósitos da geografia, tal qual temos hoje, é encontrado no conhecido mapa de Bedolina, cuja origem remonta à metade do segundo milênio a.C. Trata-se de uma inscrição rupestre descoberta num íngreme rochedo alpino do vale do Rio Pó. Este mapa representa a organização do território ocupado pelos camônicos que viveram na margem esquerda do Rio Pó e tinham como centro a cidade de Capo di Ponti, na província de Bréscia, na Itália setentrional, o qual só foi encontrado pelos romanos no ano 16 a.C. Neste mapa podemos notar toda uma organização social campestre, e ter, por ele, uma idéia muito aproximada da vida e dos costumes dessa comunidade do período neolítico. Estão gravados neste mapa figuras de homens, gado, caça, as casas, os depósitos de cereais, os campos de cultura e sua distribuição, os caminhos, o sistema de drenagem, e um poço em cada campo de cultura.

Muitos outros exemplos poderiam ser trazidos dos esquimós, dos maias, dos incas, dos astecas, dos chineses, dos assírios, dos árabes e de outros povos, reforçando a idéia de que a reprodução sobre uma superfície por meio de desenho de todo ou parte do meio conhecido é uma necessidade sentida por todos os povos em todas as épocas.

Destacamos aqui particularmente o que o professor Jaime Cortesão afirma a respeito dos primitivos habitantes do Brasil:

“Que os aborígenes do Brasil, ainda em fins do século passado, eram capazes de traçar cartas de rios com seus afluentes, cachoeiras e povoados largamente o mostram VON DEN STEINEM, que orientou a segunda das suas expedições às nascentes do Xingu por uma dessas cartas, não só os índios dessa região desenhavam estes mapas espontaneamente na areia, mas quando solicitadas pelo explorador alemão, refaziam o mesmo ou mais minucioso traçado com um lápis no papel.

Um século antes, Alexandre Rodrigues Ferreira, a quem se chamou o “Humboldt brasileiro”, fez a mesma repetida experiência com os índios do Rio Negro e Branco dos quais, obteve no dizer do grande naturalista, alguns bons traçados de rios e notáveis ensinamentos

Por essa mesma época e nos mapas dos primeiros demarcadores das fronteiras do Brasil, encontram-se com frequência traçados de rios feitos exclusiva e declaradamente por informações indígenas”. (CORTESÃO, Jaime. A cultura geográfica dos índios e a ilha-Brasil. Boletim Geográfico. Rio de Janeiro, CNG. 4(46):1328-1330, janeiro, 1947).

Entre os primitivos temos exemplos de como as informações geocartográficas pertenciam a uma classe privilegiada, e se constituíam em instrumentos de controle dos recursos naturais conhecidos. Entre os habitantes das ilhas Marshal, na Micronésia, os mapas eram confeccionados com varas entrelaçadas e fixados com fibras de palmeiras nas encruzilhadas. As ilhas eram representadas por conchas, as varas indicavam as correntes e os ventos predominantes. Foi muito difícil para os especialistas interpretarem estas cartas, mas concluíram que elas eram propriedade e segredo de algumas famílias privilegiadas existindo, entretanto, cartas mais simples e esquemáticas para uso da população leiga.

Alguns autores afirmam categoricamente que foi “a propriedade privada que estimulou o cálculo das áreas” (SODRÉ, Nelson Werneck. Formação da Geografia. In:____ Introdução a Geografia. Petrópolis, Vozes, 1977. p. 16), o que teria feito surgir a geometria, e, consequentemente, a cartografia. Teoricamente, Lacoste explica o desenvolvimento da cartografia da seguinte maneira:

Dantes, na altura em que a maior parte dos homens vivia essencialmente dentro do quadro da auto-subsistência, a quase totalidade de suas práticas inscrevia-se, para cada um deles, no âmbito de um único espaço relativamente limitado: a área da aldeia e, na periferia, as terras das aldeias vizinhas. Para lá desses limites eram os espaços mal conhecidos, desconhecidos, míticos. Para se exprimirem e falarem das suas diversas práticas, os homens referiam-se, pois, à representação de um espaço único que conheciam bem concretamente, por experiência própria.

Mas, de há muito que os chefes de guerra, os príncipes, sentiam necessidade de representar outros espaços, consideravelmente mais vastos ( os territórios que dominavam ou pretendiam dominar); também os comerciantes precisavam conhecer as estradas, as distâncias, os longínquos postos onde comerciavam com outros homens.

Para esses espaços muito vastos ou dificilmente acessíveis, a experiência pessoal, a observação e a memória já não bastavam. É então que o papel do geógrafo-cartógrafo se torna essencial: ele representa, em diversas escalas, os territórios mais ou menos vastos; a partir das “grandes descober as”, passou-se a poder representar toda a terra num só mapa, numa pequena escala, e este seria, durante muito tempo, o orgulho dos soberanos que o possuíam. Durante séculos, só os membros das classes dirigentes puderam apreender, através do pensamento, espaços demasiado vastos para que pudessem ser observados, e estas representações do espaço eram um instrumento essencial da prática do poder sobre os territórios (e os homens) mais ou menos afastados. O imperador tem de ter uma visão global e precisa do império, das suas estruturas espaciais internas (as províncias) e dos Estados que o rodeiam - é um mapa em pequena escala que é necessário. Em contra partida, para tratar dos problemas que se colocam em tal ou tal província, é necessário um mapa de maior escala, a fim de poder dar ordens, à distância, com uma relativa precisão. Mas, para a grande massa dos homens dominados, a representação do império é apenas mítica, tendo uma visão clara e eficaz apenas do território aldeão”. (LACOSTE, Ives. Miopia e sonambulismo no meio de uma espacialidade tornada diferencial. In: ____. La Geographie, ça sert d’abord a faire la guerre. Paris, François Maspero, 1976. cap. 3, p. 31-2).

Positivamente a história registra o grande esforço de Ramsés II (1333-1300 a.C), que iniciou uma medição sistemática das terras de seu império para aumentar a coleta de impostos sobre as terras, pois entre os faraós a riqueza já provinha em grande parte da renda da terra.

“Os enormes gastos dos faraós e dos sacerdotes eram cobertos principalmente com os impostos sobre a terra pagos em geral em cereais. Com fins tributários, as propriedades rurais foram medidas, demarcados os seus limites, e registrados cuidadosamente... Os resultados deviam ficar arquivados e existiam razões que fazem supor que se registravam em mapas”. (RAISZ, Erwin. Mapas Manuscritos. In: ____. Cartografia Geral. Rio de Janeiro, Científica, 1969, cap. I, p. 1)).

“A cartografia para os geógrafos, constitui a um tempo uma linguagem, uma modalidade de abertura frente as outras ciências é uma disciplina”. (GEORGE, Pierre. A geografia é o estudo de um espaço contínuo. In: ____ . Os métodos da Geografia. São Paulo, Difel, 1972. cap. 2, p. 12).

“Sendo linguagem - o meio de expressão do geógrafo - o mapa apresenta, em diferentes etapas da aquisição do conhecimento, um balanço do que se encontra assimilado e integrado à paisagem global do espaço” (GEORGE, Pierre. Op. cit. p. 55). “De fato, desde os primórdios, os chamados povos primitivos sempre tiveram a preocupação de, uma vez passada a primeira fase de contemplação e admiração por tudo que os cercavam, se interessar por localizar e explicar os acidentes naturais e artificiais que lhes diziam respeito mais de perto. Fundamentados nessas preocupações surgiam os primeiros esquemas ou representações contando com o material disponível e um alto sentido de intuição”. (SANCHES, Miguel. A cartografia como técnica auxiliar da geografia. Boletim de Geografia teorética. Rio Claro, 3(6): 31-46, 1973).

Sem duvida, “a carta é alternadamente instrumento de conhecimento na medida em que localiza os diversos elementos de um estado e de uma perspectiva, uns em relação aos outros, primeira forma de correlação, que é simplesmente uma forma de correlação espacial. Instrumento de expressão ela serve para mostrar, através de construções apropriadas, as relações de causalidade comprovadas pelas diversas ordens de pesquisa da competência do geógrafo e dos técnicos aos quais se destina para ampliar seu campo de conhecimento. É então carta de síntese e pode ser também carta de movimento, instrumento de perspectiva e de prospectiva... Um estudo de representação espacial bruto, sem a preocupação em estabelecer relações com fatos ou ações que interessam à vida e ao desenvolvimento das coletividades humanas, não é um estudo geográfico”. GEORGE, Pierre. O objeto e os métodos da Geografia. In: ____. A Geografia ativa. São Paulo, Difel, 1975. cap. 2, p. 19-20).

Nesse sentido vale a consideração de que falar em “desenvolvimento das coletividades humanas” significa falar, necessariamente, na história da humanidade. Afinal, o geógrafo deve se interessar pela história?

“Historiador do atual, o geógrafo deve prosseguir os estudos do Historiador... A geografia é o prolongamento da história”. (GEORGE, Pierre. Op. cit. p. 17-8). “Na verdade o estado atual da face do globo na medida em que depende da ação humana resulta muitíssimo da ação passada - de toda a história da humanidade - do que da situação e da ação presentes da espécie humana. De igual modo o estado atual das sociedades humanas depende muitíssimo mais do passado da sua convivência com o ambiente do que da situação e influência presentes dele. Entre a terra e o homem - terra e homem de hoje, ou de ontem, ou de qualquer época – inter interpõe-se a história. Eis porque a história se tornou sob certo aspecto, método universal da análise explicativa tanto para a Economia e sociologia como para a geografia e psicologia”. (GODINHO, Vitorino Magalhães. Palavras preliminares. In: MARTONE, Ernmanuel de. Panorama da Geografia tratado de Geografia física. Lisboa, Edição Cosmos, 1953).

Mas é de perguntar-se: qual a utilidade prática do geógrafo se interessar pela história? que contribuição pragmática pode a história oferecer a geografia? Particularmente acreditamos que esta questão transcende as fronteiras da geografia e invade todo o universo da ciência, e põe igualmente para todas as ciências a questão da história. Acreditamos que:

“... se o conhecimento da história nos apresenta uma importância prática, é que por ela aprendemos a conhecer os homens que, em condições diferentes e com meios diferentes, no mais das vezes inaplicáveis a nossa época, lutaram por valores e ideais, análogos, idênticos ou opostos aos que possuímos hoje; o que nos dá consciência de fazer parte de um todo que nos transcende, a que no presente damos continuidade, e os homens vindos depois de nós continuarão no porvir”. (GOLDMAN, Lucien. O pensamento histórico e seu objeto. In: ____. Ciências humanas e Filosofia. 7.ed. São Paulo, Difel, 1979. cap. 1, p. 22).

“A cartografia é um tema aliciante e polifacetado de vocação universalista que se liga ou serve quase todos os ramos do saber. Por isso a sua história é, de certo modo, um paralelo da evolução cultural das sociedades humanas. Pelas técnicas a que recorre liga-se intimamente a astronomia, geodésia, topografia, instrumentos de observação, artes gráficas, etc. Pelos temas de que se ocupa serve a navegação, a geografia, o estudo do ambiente; a exploração de recursos vivos, minerais e energéticos, a demografia, a agricultura, as obras públicas, etc., desempenhando um papel fundamental no planeamento do progresso e desenvolvimento de qualquer país... A construção de uma carta culmina um longo processo científico e tecnológico, e, na sua forma final, é uma síntese de conhecimentos de uma grande riqueza e um verdadeiro instrumento de trabalho, indispensável nos mais variados domínios. Esta síntese envolve, um delicado labor intelectual e vasto saber para poder transmitir de uma forma clara um máximo de informação, com uma valorização relativa dos elementos a representar ou a realçar.

Impõe-se deste modo critérios selectivos baseados em rigorosas bases cientificas, completados por uma apresentação gráfica e atraente. Tendo em mente a contribuição do rigor na aquisição de dados, o critério no seu tratamento e o sentido de beleza na sua apresentação, a carta pode considerar-se simultaneamente um resultado da Ciência e da Técnica e uma manifestação da Arte. Se este último aspecto é mais evidente na cartografia antiga, onde as áreas desconhecidas eram cobertas de figuras cheias de graça e fantasia, não deixa de ter importância nas cartas modernas, em numerosos detalhes - desde o tipo de letra à espessura do traço que, no seu conjunto, demarcam nitidamente as várias escolas cartográficas”. (FERNANDES, Barahona. Colóquio sobre panorama e perspectivas da cartografia Portuguesa. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. Lisboa, S.G.L., (7-9, 10-12): 181-2, jul./set., out./dez., 1979).

Sintetizando a nossa proposição teórica chamamos a atenção para o fato de que com o desenvolvimento da divisão social do trabalho cientifico a cartografia torna-se uma ciência autônoma com todas as consequências e implicações inerentes a essa condição. Entretanto, todo o seu desenvolvimento coloca-se dentro do contexto do desenvolvimento geral da sociedade, tendo vinculações com o desenvolvimento das outras ciências, e, correspondendo sempre às exigências históricas das sucessivas e variadas ordenações econômico-sociais da humanidade.



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