Quero partir
da mais terrível evidência que atormenta nossas vidas e dela tirar algumas
conseqüências que também amarguram nossas existências. A profissão do geógrafo
professor e do geógrafo profissional é exercida no seio da sociedade
capitalista. Isso significa que os meios materiais de produção, terra, fábricas
e máquinas, bem como os meios da produção intelectual, imprensa, rádio,
televisão, cinema etc., pertencem ou são controlados por uma minoria
proprietária desses meios.
Dessa
realidade advém que a maioria proprietária vive da exploração do trabalho da
grande maioria dos trabalhadores entre os quais os geógrafos. Devem ficar bem
claro que toda produção de bens materiais e intelectuais está organizada para
manter esta exploração. A grande maioria que são os trabalhadores trabalha em
função dos privilégios e interesses das minorias proprietárias.
Para que essa
situação não se altere a minoria proprietária tem necessidade de desenvolver
para os trabalhadores um conjunto de idéias, valores etc..., que dêem
legitimidade a esta situação. É por isso que as idéias e as decisões relativas
aos trabalhadores são produzidas e tomadas por pessoas que estão muito próximas
das influências das minorias proprietárias, deslumbradas e atraídas pelo luxo
da vida dos exploradores e que de vez em quando saboreiam as migalhas da mesa
de seus patrões. (É exatamente aqui que se situa e se dá o trabalho do
profissional da Geografia).
É por isso que
a classe dirigente capitalista fomenta o aparecimento de intelectuais, técnicos
e cientistas alheios às condições precárias e miseráveis dos trabalhadores, mas
próximos de algumas dos patrões para exatamente produzirem idéias e tomarem
decisões que mantenham a exploração dos trabalhadores e os privilégios da
classe patronal.
É nessa porção
da classe média que se concentra e se monopoliza a capacidade de pensar e de
definir sobre a vida dos trabalhadores. Esses profissionais da classe média
vivem as contradições dessa situação. Em momentos de crescimento econômico se
distanciam das condições da classe trabalhadora e se aproximam da classe
patronal, mas em momentos de crise econômica quando seu padrão de vida cai,
quando seus salários são achatados podem fazer alianças com setores de classe
trabalhadora visando recuperar seus altos salários, seu padrão de vida, enfim,
suas regalias e mordomias.
O serviço que
a Geografia Crítica pode prestar aos geógrafos é mostrar esta triste verdade de
que submetidos pelo regime capitalista os geógrafos, como os demais
profissionais da classe média, tendem a pensar e atuar a favor da exploração
dos trabalhadores empobrecidos.
Particularmente
os geógrafos deterministas tradicionais desenvolveram a “naturalização da
História”, ou seja, atribuem à natureza a responsabilidade das desgraças da
classe trabalhadora. Por exemplo, não são as chuvas as responsáveis pelas
calamidades a que são submetidos todos os anos os trabalhadores que moram nas
encostas dos morros, nos vales alagadiços ou nas margens dos igarapés; não são
as enchentes dos rios as responsáveis pelos flagelos anuais dos ribeirinhos;
não é o calor o responsável por milhares de mortes por desidratação de crianças
filhas de trabalhadores. É preciso desvendar as máscaras sociais como diz muito
bem Rui Moreira.
É preciso que
fique claro que todos esses males decorrem das relações sociais injustas que se
estabelecem no seio da sociedade capitalista. É preciso explicitar que a
política habitacional executada com o dinheiro dos trabalhadores exclui os
trabalhadores. É preciso denunciar a ausência de uma política de saúde pública
que atenda às necessidades e carências dos trabalhadores.
É preciso que se entenda de uma vez por todas que na
base de todos esses males está o aviltamento do trabalho humano. Porque não
ganha o suficiente para ter uma alimentação adequada é que o trabalhador e seus
familiares estão constantemente expostos aos fatores adversos da natureza. É
necessário portanto que o geógrafo profissional, que o professor de geografia tomem
consciência dessa situação que, na maioria das vezes, consciente ou
inconscientemente pensamos, atuamos e reforçamos a exploração dos trabalhadores
com nossas boas intenções.
Assim como se
diz que o inferno está cheio de gente com boas intenções podemos afirmar que a
exploração dos trabalhadores é feita com a melhor das boas intenções.
Consequentemente é preciso travar essa “guerrilha epistemológica”, como diz
Lacoste, contra essa tendência dos intelectuais colocarem-se a serviço da
exploração capitalista dos trabalhadores.
Acredito que é
possível aos professores de Geografia e aos geógrafos profissionais
colocarem-se a serviço das causas dos trabalhadores. Mas é difícil alistar-se
nesse exército, é difícil optar a permanecer nessa luta que é dura, complexa,
angustiante, cheia de conflitos interiores, de revezes e de frustrações. Mas
contraditoriamente é uma luta de grandes alegrias interiores, de grandes
satisfações existenciais e de grande crescimento e plenificação humana.
De fato essa
situação de Geógrafo e do Professor de Geografia, como dos demais profissionais
da classe média é muito conflituosa. De um lado são os apelos do modus vivendi da burguesia e de outro a
convocação dos trabalhadores para a luta contra a opressão capitalista. Essa
situação pode determinar duas atitudes. Uma é de negar a sua condição de
profissional de classe média, procurando perder-se no meio da multidão, sendo
mais um no meio do povo, abandonando as possibilidades concretas de colaborar
nas lutas libertárias dos trabalhadores; a outra atitude é a de renunciar
explicitamente ao compromisso de lutar pelos oprimidos uma posição de
neutralidade mas acabando concretamente por se colocar a serviço da exploração
dos trabalhadores.
É essa
situação de ambigüidade que cria condições para o aparecimento do intelectual
orgânico comprometido com as lutas dos trabalhadores. É aquele professor de
Geografia e aquele geógrafo profissional preocupados em devolver aos
trabalhadores a capacidade de decidir o seu destino, de se reapropriarem dos
recursos e capacidades de que foram expropriados pela divisão capitalista do
trabalho.
Professor de
Geografia ou Geógrafo Profissional, ambos são na verdade intelectuais, ou seja
são profissionais que pensam, planejam e organizam atividades da sociedade. Essa
capacidade de pensar, planejar e organizar a própria vida foi tirada dos
trabalhadores e essa situação é agravada na medida em que o capitalismo força
os trabalhadores a desenvolverem apenas a capacidade de produção mecânica dos
bens materiais sempre em função dos interesses da classe dominante.
O intelectual
orgânico da geografia é aquele profissional que sabe que os trabalhadores
expropriados que são de sua capacidade de pensar, planejar e organizar suas
vidas em função de seus interesses necessitam de sua solidariedade para
recuperar essas capacidades, mas reconhecem também que precisam de
conhecimentos e experiências que só os trabalhadores possuem para atender
melhor e desempenhar seu papel nas lutas libertárias dos trabalhadores.
Portanto, o
professor de geografia ou geógrafo profissional que queira se comprometer com
as lutas libertárias dos trabalhadores deve fazê-lo não porque tem boas
intenções, isso seria uma mentira, mas deve fazê-lo estabelecendo uma relação
de mútua solidariedade, consciente de que na verdade “ninguém liberta ninguém,
os homens se libertam em comunhão”.
É a partir do
estabelecimento dessas relações que o geógrafo professor e o geógrafo
profissional, com a consciência de que tem muito aprender com os trabalhadores e com a coragem
dos que sabem que podem contribuir para encaminhar com êxito as lutas dos
trabalhadores, poderão iniciar o seu trabalho de intelectuais orgânicos que
através da prática da geografia ligam-se aos processos de transformação da
sociedade em que vivemos.
Esse trabalho
consiste em coletar, sistematizar e restituir ao povo a sua própria experiência
histórica. Coletar a experiência histórica do povo significa pesquisar os
eventos, os fatos vividos pelo povo em suas lutas, vitórias e derrotas, em seus
avanços e retrocessos, seus erros e acertos para que o povo reviva
orgulhosamente seu passado revitalizando suas forças para lutar pelo futuro.
Sistematizar a
experiência do povo nada mais é do que dar sentido, dar uma finalidade aos
fatos e eventos da experiência histórica do povo, descobrindo e exaltando as
pessoas que se distinguem nas lutas da comunidade. Relacionar com as lutas
populares os ditos, as estórias, as canções, o folclore. Duvidar de certas
verdades dogmáticas ou dar uma formulação revolucionária. Por exemplo, “quem
espera nunca alcança”, “devagar nunca se chega lá’”, etc... Enfim é dizer com
clareza ao povo que todas essas idéias, costumes e valores, na maioria das
vezes, só servem para manter o povo oprimido e explorado impedindo sua
libertação.
Restituir ao
povo sua própria experiência histórica significa devolver de uma forma nova,
organizada criticamente a experiência do povo, é procurar mostrar que o povo
foi capaz e a partir daí apontar as possibilidade futuras. É devolver ao povo a
sua capacidade de pensar e agir no seu próprio interesse. É difundir a
experiência popular em lugar da história oficial. Sintetizando é conscientizar
o povo que ele é o artífice principal de sua história.
Neste momento
em que a ciência descobre o real significado da natureza amazônica, dos seus
rios e florestas para todo o sistema da Terra é preciso também resgatar a
dignidade, a sabedoria e a generosidade de seu povo, índios e caboclos que não
desvanecem de suas lutas e nos dão um exemplo de convivência harmoniosa entre
si e com a natureza. Acho que os professores de geografia e os geógrafos
profissionais não podem ficar fora dessas lutas, e o povo amazônida tem uma
tradição de resistência ativa, desde os manaus com Ajurícaba passando pelos
cabanos e recentemente com Chico Mendes.
É difícil
avaliar essa tradição de luta porque foi tirado dos povos da florestas o
direito de se desenvolverem como civilização autóctone, e os dominadores
insistem em mantê-los analfabetos. Mas é uma tradição que consegue se manter na
luta pela vida. À violência armada para destruir a floresta o povo opõe a forma
pacífica dos “empates”. Ao engodo e à violência das motoserras quer o nosso
povo as reservas extrativistas como forma de protesto contra o entreguismo
destruidor das nossas florestas antes de tê-las estudadas e pesquisadas
profundamente. Às formas escravistas de exploração do trabalho do regime
capitalista nos seringais propõe o nosso povo o trabalho livre e solidário
organizado cooperativamente.
É todo um
mundo novo que está sendo pensado pela inteligência do povo e construído pelo
seu trabalho, baseado na fraternidade e no respeito à natureza e você professor
de geografia não pode ficar fora desses grande empreendimento que o maior grupo
econômico do norte do Brasil, índios, negros caboclos, seringueiros,
castanheiros, pescadores e Cia. Ltda., querem implantar na Amazônia com
recursos próprios, sem os incentivos fiscais da SUDAM e da Suframa.
Uma outra Amazônia é possível.
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