Marilena
Chauí
Como
sabemos, a ideologia não é apenas a representação imaginária do real para
servir ao exercício da dominação em uma sociedade fundada na luta de classes,
como não é apenas
a inversão imaginária do processo histórico na qual as ideias ocupariam o lugar
dos agentes históricos reais. A ideologia, forma específica do imaginário
social moderno, é a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam
para si mesmos o aparecer social,
econômico e político, de tal sorte que essa aparência (que não devemos
simplesmente tomar como sinônimo de ilusão ou falsidade), por ser o modo
imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o ocultamento ou a
dissimulação do real. Fundamentalmente, a ideologia é um corpo sistemático de
representações e de normas que nos "ensinam" a conhecer e a agir. A
sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação muito
precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas,
anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma
lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para,
através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com
uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante.
Universalizando o particular pelo apagamento das diferenças e contradições, a
ideologia ganha coerência e força porque é um discurso lacunar que não pode ser
preenchido. Em outras palavras, a coerência ideológica não é obtida malgrado as
lacunas, mas, pelo contrário, graças a elas. Porque jamais poderá dizer tudo
até o fim, a ideologia é aquele discurso no qual os termos ausentes garantem a
sua veracidade daquilo que está explicitamente afirmado.
Sabemos também que, por
definição, na ideologia as ideias estão sempre “fora do lugar”, uma vez que são
tomadas como determinantes do processo histórico quando, na verdade, são
determinadas por ele. Evidemente, isto não significa que as ideias sejam um
“reflexo” invertido do real, mas indica apenas que elas não precedem o real,
pois o exprimem, seja na forma imediata do aparecer, seja na forma mediata da
reflexão. Por outro lado, ao afirmar que na ideologia as ideias estão “fora do
lugar”, essa afirmação nada tem a ver com a geografia (como nos poderia levar a
crer, por exemplo, a infindável repetição de que no Brasil se pensa por importação
de ideias estrangeiras). “Fora do lugar” remete à circunscrição do social e
político de uma sociedade determinada. Em suma: as ideias deveriam estar nos
sujeitos sociais e em suas relações, mas, na ideologia, os sujeitos sociais e
suas relações é que parecem estar nas ideias.
Também sabemos que a
ideologia não tem história. Isto não significa que a ideologia seja um corpus
imóvel e idêntico de representações e normas, mas (pois a experiência nos
mostra, a cada passo, as mudanças ideológicas). Dizer que a ideologia não tem
história significa apenas dizer, em primeiro lugar, que as transformações
ocorridas em um discurso ideológico não dependem de uma força que lhe seria
imanente e que o faria transformar-se e, sim, que tais transformações decorrem
de uma outra história por meio da ideologia, a classe dominante procura
escamotear; em segundo lugar, e mais profundamente, significa que a tarefa
precisa da ideologia está em produzir uma certa imagem do tempo como progresso
e desenvolvimento de maneira a exorcizar o risco de enfrentar efetivamente a
história. Afirmar que a ideologia não tem história é, portanto, afirmar que,
além de “fora do lugar”, nela as ideias também estão “fora do tempo”. Embora
paradoxal, essa constatação é inevitável. O paradoxo da expressão “fora do
tempo” decorre do fato de que, estando a ideologia a serviço da dominação de
uma classe social historicamente determinada, necessariamente a atualidade da
dominação exercida exigiria que as ideias estivessem encravadas em seu próprio
tempo. Para que tal paradoxo se desfaça é preciso que compreendamos a diferença
entre saber e ideologia.
O
saber é um trabalho. Por ser um trabalho, é uma negação reflexionante, isto é,
uma negação que, por sua própria força interna, forma algo que lhe é externo,
resistente e opaco. O saber é o trabalho para elevar à dimensão do conceito uma
situação de não-saber, isto é, a experiência imediata cuja obscuridade pede o
trabalho da clarificação. A obscuridade de uma experiência nada mais é senão
seu caráter necessariamente indeterminado e o saber nada mais é senão o
trabalho para determinar essa indeterminação, isto é, para torná-la inteligível.
Só há saber quando a reflexão aceita o risco da indeterminação que a faz
nascer, quando aceita o risco de não contar com garantias prévias e exteriores
à própria experiência e à própria reflexão que a trabalha. Ora, para que a
ideologia seja eficaz é preciso que realize um movimento que lhe é peculiar,
qual seja, recusar o não-saber que habita a experiência, ter a habilidade para
assegurar uma posição graças à qual possa neutralizar a história, abolir as
diferenças, ocultar as contradições e desarmar toda a tentativa de
interrogação. Assim, graças a certos artifícios que lhe são peculiares (como,
por exemplo, elevar todas as esferas da vida social e política à condição de
“essências”) a ideologia torna-se dominante e adquire feição própria sempre que
consiga conjurar ou exorcizar o perigo da indeterminação social e política,
indeterminação que faz com que a interrogação sobre o presente (o que pensar? o
que fazer?) seja inutilizada graças a representações e normas prévias que fixem
definitivamente a ordem instituída. Sob esse prisma, torna-se possível dizer
que na ideologia as ideias estão fora do tempo, embora a serviço da dominação
presente. Com efeito, afirmar que nela as ideias estão fora do tempo é perceber
a diferença entre o histórico ou instituinte e o institucional ou instituído. A
ideologia teme tudo quanto possa ser instituinte ou fundador, e só pode
incorporá-lo quando perdeu a força inaugural e tornou-se algo já instituído.
Por essa via podemos perceber a diferença entre ideologia e saber, na medida em
que, neste, as ideias são produto de um trabalho, enquanto naquela as ideias
assumem a forma de conhecimentos, isto é, de ideias instituídas.
Tomemos
a ajuda de um exemplo. Costuma-se imaginar que o Santo Ofício puniu Galileu
porque a física galilaica punha em risco
uma representação do mundo que servia de sustentáculo para a dominação teológico-política
medieval. Assim sendo, torna-se
compreensível a reabilitação do saber galilaico
quando a burguesia toma o poder e encontra na nova física uma representação do
espaço e do tempo que convém ao exercício de sua prática econômica e política.
Dessa maneira, a demolição do poder teológico-político medieval faz da scienza nuova um conhecimento válido que
se converte, pouco a pouco, em ideologia da nova classe dominante, laica e
profana. Ora, se fizermos um pequeno retorno à história, veremos que os
acontecimentos ocorreram de modo bastante diverso. Em primeiro lugar, e sobretudo,
não houve laicização da política, mas apenas um deslocamento do lugar ocupado
pela imagem de Deus como poder uno e transcendente: Deus baixou do céu à terra,
abandonou conventos e púlpitos e foi alojar-se numa imagem nova, isto é, no
Estado. Não quero com isto referir-me ao direito divino dos reis. Refiro-me à
representação moderna do Estado como poder uno, separado, homogêneo e dotado de
força para unificar, pelo menos de direito, uma sociedade cuja natureza própria
é a divisão das classes. É esta figura do Estado que designo como a nova morada
de Deus. Em segundo lugar, e consequentemente, não houve passagem de uma
política teológica a uma política racional ateológica ou ateia, mas apenas uma transferência
das qualidades que eram atribuídas à Divina Providência à imagem moderna da
racionalidade. A nova ratio é
teológica na medida em que conserva, tanto em política quanto em ideologia,
dois traços fundamentais do poder teológico: de um lado, a admissão da
transcendência do poder face àquilo sobre o que este se exerce (Deus face ao
mundo criado, o Estado face à sociedade, a objetividade das ideias face àquilo
que é conhecido); por outro lado, a admissão de que somente um poder separado e
externo tem força para unificar aquilo sobre o que se exerce (Deus unifica o mundo
criado, o Estado unifica a sociedade, a objetividade unifica o mundo inteligível).
Ora, se não é a laicização da racionalidade (pois não houve) que explica a
aceitação da física galilaica pela burguesia, de onde nasce a incorporação
dessa física como modelo da racionalidade moderna? O galilaico torna-se
aceitável e passível de incorporação quando já foram acionados dispositivos
econômicos, sociais e políticos que permitam acolher o saber novo não porque
seja inovador, nem porque seja verdadeiro, mas que perdeu a força instituinte,
já se transformou de saber sobre a natureza em conhecimentos físicos, já foi
neutralizado, e pode servir para justificar a suposta neutralidade racional de
uma certa forma de dominação. Nessa passagem do que era instituinte à condição
de discurso instituído ou de discurso do conhecimento, assistimos ao movimento
pelo qual a ideologia incorpora e consome as novas ideias, desde que tenham
perdido as amarras com o tempo originário de sua instituição e, assim, fiquem
fora do tempo. E o que foi dito acerca de Galileu poderia ser dito, por
exemplo, a respeito de Freud. Este dissera que, com a psicanálise, trouxera a
peste à humanidade. Como explicar, então, que esse flagelo tenha podido
converter-se, mundo afora, em terapia adaptativa e de ajustamento, se aquilo a que
essa “terapia” pretende nos ajustar é exatamente o que torna possível neurose,
a psicose e a loucura?
O caso Galileu (como o
caso Freud) nos ensina algo que poderíamos designar com a expressão: discurso
competente.
O discurso competente é
aquele que pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado
(estes termos agora se equivalem) porque perdeu os laços com o lugar e o tempo
de sua origem. Assim, não é paradoxal nem contraditório em um mundo como o
nosso, que cultua patologicamente a cientificidade, surgirem interdições ao
discurso científico. Podemos dizer que exatamente porque a ideologia
contemporânea é cientificista, cabe-lhe o papel de reprimir o pensamento e o
discurso científico. É nesse contexto de hipervalorização do conhecimento dito
científico e de simultânea repressão ao trabalho científico que podemos melhor
apanhar o significado daquilo que aqui designamos como discurso competente.
O discurso competente é
o discurso instituído. É aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia
ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer
coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente
confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada,
isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente
reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as
circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir
e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones
da esfera de sua própria competência.
Cabe-nos,
então, indagar o que significam essa repartição, circunscrição e demarcação do
discurso quanto aos interlocutores, o tempo, o lugar, a forma e o conteúdo.
Antes, porém, de tentarmos responder a estas questões, cumpre fazer uma
observação. Com frequência, a crítica do discurso competente costuma cair em
uma confusão que é, no final das contas, um logro: a confusão decorrente da
identificação entre discurso competente e discurso elitista, em oposição ao
discurso democrático, identificado com o discurso de massa. Todos sabem o
quanto a Escola de Frankfurt foi tachada de elitista por ter sistematicamente
recusado a chamada “cultura de massa”. Aqueles que criticam os frankfurtianos,
o fazem por ignorarem um dos pontos fundamentais da Escola no que concerne à
análise do conceito de “massa”. Para os pensadores da Teoria Crítica, a cultura
dita de “massa” é a negação de uma cultura democrática, pois em uma democracia
não há massa; nela, o aglutinado amorfo de seres humanos sem rosto e sem vontade
é algo que tende a desaparecer para dar lugar a sujeitos sociais e políticos
válidos. Assim, ao tentarmos aqui a crítica do discurso competente,
procuraremos não cair no logro da falsa oposição elite-massa, e elite popular.
Pelo contrário, não só é importante evitar que a crítica da competência
desemboque em populismo, como ainda é fundamental mostrar que aquelas duas
oposições não têm sentido dentro do discurso competente.
Para alcançarmos a região
onde melhor se determina e melhor se efetua o discurso competente precisamos
referi-lo a um fenômeno histórico preciso: a burocratização das sociedades
contemporâneas e a ideia de organização que se encontra na base desse fenômeno.
A
burocratização é um "processo que se impõe ao trabalho em qualquer nível
em que se o considere, seja o trabalho de direção, seja o dos executantes e
que, ao se impor, impõe um quadro social homogêneo tal que a estabilidade geral
do emprego, a hierarquia dos ordenados e das funções, as regras de promoção, a
divisão das responsabilidades, a estrutura da autoridade, tenham como efeito
criar uma única escala de status socioeconômico, tão diversificada quanto
possível"1. O fenômeno da burocratização, que Hegel e Marx
haviam circunscrito à esfera do Estado, devora toda a sociedade civil,
distribuída em burocracias empresariais (na indústria, finança e comércio),
escolares, hospitalares, de saúde pública, sindicais, culturais, partidárias
etc. O processo de burocratização de todas as esferas da vida social, econômica
e política, de todas as manifestações culturais (da hierarquia da universidade
à hierarquia das igrejas, “populares” ou não) realiza-se sob a égide de uma ideia
mestra: a ideia de Organização entendida como existência em si e para si de uma
racionalidade imanente ao social e que se manifesta sempre da mesma maneira,
sob formas variadas, desde a esfera da produção material até à esfera da
produção cultural. À medida que a complexidade da vida social cresce no modo de
produção capitalista e nas formações históricas ditas “socialistas”, o Estado
se expande em todos os setores, encarregando-se de uma parte considerável da
vida humana, de tal modo que, por sua mediação, o tecido da sociedade torna-se
cada vez mais cerrado e encerrado sobre si mesmo. A ideologia dispõe, então, de
um recurso para ocultar essa presença total ou quase total do Estado na
sociedade civil: o discurso da
Organização.
Na compreensão da
ideologia do discurso competente, o ponto de maior interesse para nós
encontra-se no duplo movimento pelo qual o crescimento do poder do Estado é
negado e afirmado pelo discurso. A dificuldade para percebermos de que se trata
de um só e mesmo movimento com duas faces, ou de um duplo movimento simultâneo
de afirmação e negação, decorre do fato de que há, aparentemente, duas
modalidades diferentes do discurso da competência, quando, na verdade, trata-se
de um só e mesmo discurso. Em uma palavra: tendemos a distinguir o discurso do
poder e o discurso do conhecimento, ou seja, o discurso do burocrata e o
discurso do não-burocrata.
Vejamos, de início, a
aparência de que há dois discursos competentes diversos para, a seguir,
percebermos que se trata de um discurso único dotado de duas caras.
Burocratização
e Organização pressupõem as seguintes determinações: a) a crença na realidade
em si e para si da sociedade, de tal modo que a racionalidade dos meios de ação
inutiliza automaticamente qualquer questão acerca da racionalidade dos fins da
ação; b) existência de um sistema de autoridade fundado na hierarquia de tal
modo que subir um degrau da escala corresponde à conquista de um novo status,
uma nova responsabilidade e um novo poder que não dependem daquele que ocupa o
posto, mas que pertence ao próprio degrau hierárquico, ou seja, a reificação da
responsabilidade e do poder alcança o grau máximo na medida em que é o cargo, e
não seu ocupante, que possui qualidades determinadas; c) como consequência,
surgimento de um processo de identificação dos membros de uma burocracia
qualquer com a função que exercem e o cargo que ocupam, identificação que se
exprime na existência de um cerimonial prefixado que garante o reconhecimento
recíproco dos membros na qualidade de superiores e subalternos, bem como o
reconhecimento da competência específica de cada um segundo o posto que ocupa;
d) a direção, que não transcende a burocracia ou a organização, mas também faz
parte dela sob a forma de administração, isto é, a dominação tende a permanecer
oculta ou dissimulada graças à crença em uma ratio administrativa ou administradora, tal que dirigentes e
dirigidos pareçam ser comandados apenas pelos imperativos racionais do
movimento interno à Organização. Em uma palavra: tem- se a aparência de que
ninguém exerce poder porque este emana da racionalidade imanente do mundo
organizado ou, se preferirmos, da competência dos cargos e funções que, por
acaso, estão ocupados por homens determinados.
Nesse contexto, podemos
aprender a primeira modalidade do discurso competente que se distribui em três
registros: há o discurso competente do administrador-burocrata, o discurso
competente do administrado-burocrata, e o discurso competente e genérico de
homens reduzidos à condição de objetos socioeconômicos e sóciopolíticos, na
medida em que aquilo que são, aquilo que dizem ou fazem, não depende de sua
iniciativa como sujeitos, mas do conhecimento que a Organização julga possuir a
respeito deles. Essa primeira modalidade da competência é aquela submetida à
norma restritiva do “não é qualquer um
que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer
circunstância”.
Para compreendermos a
outra modalidade ou a outra face do discurso da competência, precisamos levar
em conta a transformação sofrida pela própria ideologia burguesa com o processo
da burocratização.
Em sua forma clássica,
o discurso burguês é legislador, ético e pedagógico. Tratava-se de um discurso
proferido do alto e que, graças a transcendência conferida às ideias, nomeava o
real, possuía critérios para distinguir o necessário e o contingente, a
natureza e a cultura, a civilização e a barbárie, o normal e o patológico, o
lícito e o proibido, o bem e o verdadeiro e o falso: punha ordem no mundo e
ensinava. Fazia das instituições como Pátria, Família, Empresa, Escola, Estado
(sempre escritos com maiúsculas), valores e reinos fundados de fato e de
direito. Por essa via o discurso nomeava os detentores legítimos da autoridade:
o pai, o professor, o patrão, o governante, e, consequentemente, deixava
explícita a figura dos subordinados e a legitimidade da subordinação. Emitia
conhecimentos sobre a história em termos de progresso e continuidade, oferecendo
com isto, um conjunto de referenciais seguros fixados no passado e cuja obra
era continuada pelo presente e acabada pelo futuro. Era o discurso da tradição
e dos moços, isto é, o discurso que se endereçava a ouvintes diferenciados por
geração e unificados pela unidade da tarefa coletiva herdada.
Com
o fenômeno da burocratização e da organização, a ideologia deixou de ser
discurso legislador, ético e pedagógico fundado na transcendência das ideias e
dos valores, para converter-se em discurso anônimo e impessoal, fundado na pura
racionalidade de fatos racionais. Não deixou de ser legislador, ético e
pedagógico, mas deixou de fundar-se em essências e valores, como deixou de ser
proferido do alto para fundar-se no racional inscrito no mundo e proferir-se
ocultando o lugar de onde é pronunciado. Ganhou nova cara: tornou-se discurso
neutro da cientificidade ou do conhecimento.
Sob o signo da Organização
aparece no mundo da produção um conhecimento acerca da racionalidade tal que
esta já não é considerada como fruto ou aplicação da ciência ao mundo do
trabalho, mas como ciência em si, ciência encarnada nas coisas. A ideia de
Organização serve para cimentar a crença na existência de estruturas (infra ou
supra, pouco importa) que existem em si e funcionam em si sob a direção de uma
racionalidade que lhes é própria e independente da vontade e da intervenção
humanas. O real, a ação e o conhecimento ficam consubstancializados,
identificados. No interior dessa "substância", isto é, da
Organização, os homens já encontram pré-traçadas as formas de ação e de
cooperação "racionais", ou seja, aquelas que lhes será permitido ter.
E cada sujeito imagina conhecer-se a si mesmo pela mediação do conhecimento que
a Organização julga possuir a respeito dele. A ideologia, trazendo um novo modo
de representar a racionalidade e o objeto racional, realiza-se agora pelo
descomunal prestígio conferido ao conhecimento, confundido com a ciência ou com
a cientificidade.
O que é o discurso
competente enquanto discurso do conhecimento? Sabemos que é o discurso do
especialista, proferido de um ponto determinado da hierarquia organizacional.
Sabemos também que haverá tantos discursos competentes quantos lugares
hierárquicos autorizados a falar e a transmitir ordens aos degraus inferiores e
aos demais pontos da hierarquia que lhe forem paritários. Sabemos também que é
um discurso que não se inspira em ideias e valores, mas na suposta realidade
dos fatos e na suposta eficácia dos meios de ação. Enfim, também sabemos que se
trata de um discurso instituído ou da ciência institucionalizada e não de um
saber instituinte e inaugural e que, como conhecimento instituído, tem o papel
de dissimular sob a capa da cientificidade a existência real da dominação.
Todavia,
essas determinações da linguagem competente não nos devem ocultar o
fundamental, isto é, o ponto a partir do qual tais determinações se constituem.
A condição para o prestígio e para a eficácia do discurso da competência como
discurso do conhecimento depende da afirmação tácita e da aceitação tácita da
incompetência dos homens enquanto sujeitos sociais e políticos. Nesse ponto, as
duas modalidades do discurso da competência convergem numa só. Para que esse
discurso possa ser proferido e mantido é imprescindível que não haja sujeitos,
mas apenas homens reduzidos à condição de objetos sociais. Ora, exatamente no
instante em que tal condição é preenchida (o discurso administrativo como
racionalidade do real) é que a outra modalidade do discurso competente entra em
cena para ocultar a verdade de sua primeira face. Ou seja, o discurso competente
como discurso do conhecimento entra em cena para tentar devolver a socioeconômicos
e sócio-políticos a qualidade de sujeitos que lhe foi roubada. Essa tentativa
se realiza através da competência privatizada. Invalidados como seres sociais e
políticos, os homens seriam revalidados por intermédio de uma competência que
lhes diz respeito enquanto individuais ou pessoas privadas. Ora, essa
revalidação é um logro na medida em que é apenas a transferência, para o plano
individual e privado do discurso competente do conhecimento cujas regras já
estão dadas pelo mundo da burocracia e da organização. Ou seja, a competência
está submetida à mesma reificação que preside a competência do discurso do
conhecimento. Basta que prestemos uma certa atenção ao modo pelo qual opera a
revalidação dos indivíduos pelo conhecimento para que percebamos sua fraude.
Sabemos
que uma das maneiras mais eficazes de criar nos objetos socioeconômicos e
sócio-políticos a crença de que são sujeitos consiste em elaborar uma série de
discursos segundos ou derivados, por cujo intermédio é outorgada competência
aos interlocutores que puderem assimilá-los. Eis por que a partilha entre elite
e massa é, senão ilusória, pelo menos um falso problema. Que discursos segundos
ou derivados são estes? São aqueles que ensinarão a cada um como relacionar-se
com o mundo e com os demais homens. Como escreve Lefort, o homem passa a
relacionar-se com o seu trabalho pela mediação do discurso da tecnologia, a
relacionar-se com o desejo pela mediação do discurso da sexologia, a
relacionar-se com a alimentação pela mediação do discurso dietético, a relacionar-se
com a criança por meio do discurso pedagógico e pediátrico, com o lactente, do
discurso da puericultura, com a natureza, pela mediação do ecológico, com os
demais homens por meio do discurso da psicologia e da sociologia. Em uma
palavra: o homem passa a relacionar-se com a vida, com seu corpo, com a
natureza e com os demais seres humanos através de mil pequenos modelos
científicos nos quais a dimensão propriamente humana da experiência
desapareceu. Em seu lugar surgem milhares de artifícios mediadores e promotores
de conhecimento que constrangem cada um e todos a se submeterem à linguagem do
especialista que detém os segredos da realidade vivida e que, indulgentemente,
permite ao não especialista a ilusão de participar do saber. Esse discurso competente
não exige uma submissão qualquer, mas algo profundo e sinistro: exige a
interiorização de suas regras, pois aquele que não as interiorizar corre o
risco de ver-se a si mesmo como incompetente, anormal, a-social, como detrito e
lixo. Estamos de volta ao Discurso do Método, porém não mais como projeto de
dominação da natureza (pois, de há muito, a sociedade burguesa já se encarregou
dessa tarefa) e sim como exigência de interiorizar regras que nos assegurem que
somos competentes para viver. A invasão dos mercados letrados por uma avalanche
de discursos de popularização de conhecimento não é signo de uma cultura
enlouquecida que perdeu os bons rumos do bom saber: é apenas uma das
manifestações de um procedimento ideológico pelo qual a ilusão coletiva de
conhecer apenas confirma o poderio daqueles a quem a burocracia e a organização
determinaram previamente como autorizados a saber.
A
ciência da competência tornou-se bem-vinda, pois o saber é perigoso apenas
quando é instituinte, negador e histórico. O conhecimento, isto é, a
competência instituída e institucional não é um risco, pois é arma para um
fantástico projeto de dominação e de intimidação social e política. Como
podemos notar, não basta uma crítica humanista ou humanitária ao delírio
tecnocrata, pois este é apenas um efeito de superfície de um processo obscuro
no qual conhecer e poder encontraram sua forma particular de articulação na
sociedade contemporânea. Talvez, por isso mesmo, hoje, a fúria inquisitorial se
abata, em certos países, contra esse saber enigmático que, na falta de melhor,
chamaríamos de ciências do homem e que, quando não são meras
institucionalizações de conhecimentos, instauram o pensamento e se exprimem em
discursos que, não por acaso, são considerados incompetentes. Cumpre lembrar,
ainda, que, em matéria de incompetência, nos tempos que correm, a filosofia tem
obtido sistemática e prazerosamente o primeiro lugar em todas as paradas de
sucesso competentes.
Disponível
em:
CHAUI,
Marilena. Cultura e democracia. O discurso competente e outras falas. 13ª ed.
São Paulo, Cortez, 2011. (Pag. 15-25).
[*]Este
texto foi apresentado originalmente na 29ª reunião anual da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência no simpósio “Ideologia e linguagem”, em
1977. Foi publicado em 1978 na Revista da
Associação Psiquiátrica da Bahia, v. 2, n° 1.
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