7 de jan. de 2012

NA CONSTRUÇÃO DO TERRITÓRIO A DIVERSIDADE DA CULTURA HUMANA


Prof. Dr. RobertoMonteiro de Oliveira

INTRODUÇÃO - Quando a Geografia surge como ciência entre os gregos, no século VI a.C., tinhacomo objeto a reprodução visual da idéia que então se tinha da Terra, o que como decorrer do tempo, passa a ser preocupação da Cartografia. A própriaetimologia da palavra Geografia sugere esta definição: grafia da Terra.
Ao longo do tempo, a Geografia, acompanhandoa evolução da ciência, foi também atualizando o seu conteúdo epistemológico eseus métodos e técnicas de pesquisa.
Ainda na antiguidade clássica, com a expansãodos gregos no Mediterrâneo e com a expansão colonial dos romanos na Europa,Ásia e África, a Geografia, além do levantamento topográfico das regiões,preocupa-se também com o levantamento dos recursos humanos e naturais dasregiões conquistadas, o que ficou conhecido como corografias.
A primeira obra geográfica historicamenteregistrada, tal qual ainda conhecemos hoje, levantamentos da natureza e dasociedade ilustrados com mapas, surgiu na cidade de Mileto, na Jônia, grandecentro comercial grego, com Anaximandro, discípulo de Tales de Mileto.
Anaximandro (610-546 a.C), sintetizando asinformações geográficas do mundo conhecido na época elaborou também o que oProfessor André Libault chamou de “o primeiro planisfério”, e que ficouconhecido como o mapa circular de Anaximandro.
Seguindo sua trajetória histórica, aGeografia foi considerada posteriormente, como ciência que estuda a superfícieda Terra. A enormidade deste conteúdo provocou sérias críticas a essa desmedidapretensão.
Outros autores consideraram a Geografia tendocomo objeto o estudo da paisagem. É interessante notar que esta proposta emboramantenha as características da Geografia como ciência descritiva, buscando nasoutras ciências as informações para suas sínteses, teve autores de renome quediscutiram longamente este conceito de paisagem geográfica como é o caso deYves Lacoste em sua obra Paysages politiques.
Várias outras definições de Geografia foramsendo elaboradas tendo em vista a conjuntura econômica, política e social bemcomo os objetivos e compromissos de seus autores.
Daí falar-se em Geografia como: estudo daindividualidade dos lugares; estudo de diferenciação de áreas; estudo dasregiões da Terra, e etc., etc....
Recentemente considerou-se a Geografia comoestudo do espaço terrestre, o que suscitou grandes polêmicas a respeito doconceito de espaço.
Atualmente debate-se ainda a concepção deGeografia como ciência que estuda a relação da sociedade com a natureza,havendo várias correntes defendendo pontos de vista, ou seja, interessesespecíficos.
Entretanto, entendemos que qualquer definiçãoque se escolha, por mais autorizada que seja, corresponde sempre a umdeterminado momento da evolução de uma ciência.
Um conhecimento claro do conteúdo e dascaracterísticas e tendências atuais da Geografia se adquire melhor seguindo suaevolução histórica.
Este trabalho coloca-se neste debatedefendendo que a Geografia é a ciência que estuda a dimensão espacial da açãohumana sobre a natureza.
Da ação humana sobre a natureza resulta o quechamamos hoje de território. O território como todo ser concreto tem umadimensão espacial que pode ser representada, atualmente, por fotografias, porfotografias aéreas, imagens de satélite, por mapas e etc...
Atualmente, a ação humana sobre a natureza éum processo que se dá de forma socializada mas que remonta ao aparecimento dohomo habilis e que passou por uma longa evolução, tanto nas técnicas deintervenção humana sobre natureza como no processo de socialização.
No momento em que a humanidade é tomada poresse movimento de globalização totalitária, contraditoriamente, descobre-se,segundo Edgar Morin a Terra-Pátria, e, ao mesmo tempo, segundo James Lovelock aTerra Gaia.
O debate sobre o conteúdo da nova concepçãode Geografia está posto. E, seguindo a tradição de buscar nas outras ciências elementosque nos ajudem a aprofundar essas discussões, que não pode ficar restritaapenas aos geógrafos, trago a contribuição de alguém que muito tem refletidosobre a condição humana na atualidade.

Vivíamos numa Terra desconhecida,vivíamos numa Terra abstrata, vivíamos numa Terra objeto. Nosso fim de séculodescobriu a Terra-sistema, a TerraGaia, a biosfera, a Terra parcela cósmica, a Terra-pátria. Cada um de nós vem da terra, éda terra, está na terra... Um planeta por pátria? Sim, tal é o nosso enraizamentono cosmos. Sabemos doravante que o pequeno planeta perdido é mais que um lugarcomum a todos os seres humanos. É nossa casa, home, heimat, é nossa pátria e,mais ainda nossa Terra-Pátria. (MORIN, Edgar etKERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. Porto Alegre, Editora Sulina, 1995, p.185-6).
A TERRA DAS MULHERES E DOS HOMENS - “... E Deus criouo homem e a mulher e os abençoou: Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos,enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves doscéus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra”. (Cf. Gn 1,27-28). Esta passagem bíblica tirada do livro do Gênesis sintetiza todo um projeto de vida para a humanidade.
Na verdade o relato bíblico do Gênesisabordando questões fundamentais para o gênero humano, origem, evolução efinalidade do homem e do mundo, segundo a exegese cristã ecumênica atual, nãofoi tirado exclusivamente da cultura judaica, mas o autor do livro do Gênesis “tirou tudo do fundo comum da cultura dospovos do oriente médio antigo”, portanto o relato bíblico é uma amostramuito significativa das questões existenciais fundamentais postas por todas asoutras culturas humanas que deram origem ao que ficou conhecido comoCivilização Cristã Ocidental.
Dentro da perspectiva que defendemos nestetrabalho, esta passagem bíblica coloca de forma que só a sabedoria divinapoderia colocar a questão do domínio da humanidade sobre a natureza.
Pela proposta bíblica este domínio não devese dá de forma solitária mas de forma conjunta, homens e mulheres, e, nem deforma individualizada mas de forma solidária todos os homens e todas asmulheres de modo que a apropriação da natureza pela humanidade deve ser paratodos e não apenas para alguns.
A passagem bíblica toca exatamente nos pontosfundamentais daquilo que resultaria da ação dominadora da humanidade sobre anatureza: o território.
A DOMINAÇÃO DO HOMEM SOBRE A NATUREZA - Tradicionalmente se diz que a dominação do homem sobre a natureza se dáexatamente sobre o solo, sobre as águas interiores e sobre os mares, sobre omar territorial, sobre os continentes e sobre o espaço aéreo sobre os quais osEstados exercem a soberania.
Mas é preciso lembrar e ressaltar que aapropriação do homem sobre a natureza se dá através do trabalho. Foi através dotrabalho que os homens e as mulheres satisfizeram suas necessidades eaperfeiçoando as técnicas de trabalho contribuíram e contribuem ainda para odesenvolvimento da humanidade, pois que o trabalho humano não é apenas umaforça física para a produção de bens materiais nem muito menos, unicamente umamercadoria para ser vendida.
O trabalho humano em qualquer sistemapolítico, econômico ou social que se realize aponta sempre para a superaçãoindividual e coletiva e se coloca do plano da realização total da humanidade.
Trabalhando o homem realiza e desenvolvetodas as suas potencialidades físicas e psíquicas, contribui para o bem estarde sua comunidade, cria laços de solidariedade com seus semelhantes e juntosconstroem o território, a nação, o Estado e etc. É no trabalho solidário que ohomem legitima a posse dos bens da natureza. É por isso que em todos os tempose lugares os homens sempre lutaram pela valorização do trabalho e dotrabalhador.
Esta é uma doutrina clássica no direito e quese reafirma na jurisprudência ocidental a partir do contato dos europeus com ascivilizações ameríndias conforme nos diz Annie Jacob no seu livro “O trabalhoreflexo das culturas”:

“... Por exemplo, pouco após asdescobertas, pode-se observar que as regras de direito que definem apropriedade privada das terras nas sociedades ocidentais foram inspiradas nasituação criada por essas novas terras: considera-se então que a terra não épossuída se não estiver trabalhada. Os escritos de vários autores conhecidospor terem contribuído nesta época, para a concepção das regras de direito naEuropa, o dizem explicitamente, Hugo de Grotius, cognominado “o pai do direitodas gentes”, que escreve em 1623: «se no território de um povo encontra-sealguma terra deserta e estéril, é necessário também concedê-la aos estrangeirosque a procuram: e a mesma deve ser validamente ocupada por eles porque não sedeve ter como possuída senão aquela que está cultivada»(Direito da guerra e da paz, tomo I, livro II, capítulo II «Das coisas quepertencem em comum aos homens», ponto 17). (Cf. JACOBB, Annie. Le travail reflet des cultures.Paris, PUF, 1994, p. 9-10).

É importante colocar estas doutrinas poissabemos que historicamente a maioria dos conflitos e até guerras entre asnações se deram exatamente por causa de definição de limites territoriais ecuja solução pacífica, em alguns casos, se dá a partir da aplicação deprincípios que remontam à convivência dos povos da Antigüidade clássica. Oprincípio do Uti possidetis é o exemplo mais conhecido.
O TRABALHO COMO AGENTE CULTURAL - Estas considerações levam-nos a afirmar que o quecaracteriza todas as civilizações é o trabalho. Em todas as civilizações otrabalho foi sempre considerado um valor, uma virtude. Trabalhando cadacomunidade humana, imprime no meio ambiente as marcas da sua identidadecultural. Apropriando-se do meio geográfico pela presença atuante, laboriosa esocializada a comunidade legitima a posse e cria condições para o exercício dasoberania sobre aquele território.
Lamentavelmente o trabalho humano ainda estápor merecer uma reflexão mais humanizante dos geógrafos.
Estabelecer uma geografia do trabalhoimplica, antecipadamente, na tentativa de afirmar a especificidade geográficado objeto em relação às outras ciências humanas, sociologia, etnologia,economia. Qualquer que seja a ideologia de base mantida, o trabalho é definidopor sua natureza e sua função, em sua relação com estruturas econômicas esociais. De fato, é objeto de estudo tanto da parte de economistas como desociólogos. Que pode acrescentar um enfoque geográfico? [...] De início énecessário retornar às fontes epistemológicas, isto é, à própria definição detrabalho. [...] O trabalho foi definido por filósofos representantes deideologias muito diferentes em termos mais ou menos semelhantes. Para KarlMarx, “o trabalho é antes de tudo, um ato que se passa entre o homem e anatureza. O próprio homem representa nisso, diante da natureza, o papel de umapotência natural. A força de que seu corpo é dotado, braços e pernas, cabeça emãos, colocam-na em movimento para utilizar matérias em forma útil à sua vida”.De maneira mais concisa, Henri Bergson escreve em A evolução criadora: “Otrabalho humano consiste em criar utilidade”. Se a interpretação de Karl Marximplica na assimilação do trabalho a uma ação produtiva, a fórmula de HenriBergson é mais matizada e mais aberta. Confundir o trabalho com a modificaçãoda natureza ou uma submissão da natureza para fins de produção apenas ofereceuma definição parcial do trabalho. (Cf. GEORGE,Pierre. Introdução. In: ____. Populações ativas. São Paulo/Rio de Janeiro,Difel, 1979, p. 9-10).
Sem se posicionar sobre a questão fundamentalque é o trabalho do ponto de vista geográfico, Pierre George cita outrosautores e elenca alguns tópicos para o que entende ser uma Geografia dotrabalho:
GeorgesFriedman, depois de ter antecipado a seguinte definição: “O conjunto das ações que o homem, com objetivo prático, com auxílio docérebro, das mãos, de ferramentas e de máquinas, exerce sobre a matéria, açõesque por sua vez reagem sobre o homem e o modificam”, retomando quase amesma definição dialética de Karl Marx, precisa que essa definiçãosó pode ser parcial: “As atividadesclassicamente ditas terciárias, segundo a terminologia de Colin Clark,repensada por J. Fourastié, compreendem trabalhos que escapam, em todo o caso àprimeira vista, à definição que propusemos. No século XX, o homem no trabalhonão é sempre, e o é cada vez menos, no sentido clássico do termo, um homo faber”.Portanto, é a noção de utilidade queabarca da melhor maneira, o conjunto das formas de trabalho. [...] Desse modovemos progressivamente os objetos de uma geografia do trabalho:
- a distinção de sistemas técnicos,econômicos e sociais que comportam formas particulares de articulação dasdiferentes atividades, de divisão da “força de trabalho” conforme formas elugares de trabalho;
- a avaliação das taxas de utilizaçãoda força de trabalho e de estruturas e técnicas;
- o local do trabalho no tempo e espaçovivido, a gênese de um direito do trabalho e dos quadros institucionais noplano nacional e internacional. (Cf. ____.Introdução. In: ____. Populações ativas. São Paulo/Rio de Janeiro, Difel, 1979,p. 10-11).

Numa perspectiva diferente de Pierre George,Milton Santos no conjunto de suas reflexões sobre as “Metamorfoses do espaçohabitado” faz algumas colocações que nos parecem fundamentais para uma futuraGeografia do trabalho:
O homem constitui, dentro da natureza,uma forma de vida. O que o distingue das outras formas de existência? Numerosasrespostas podem ser dadas tais como: o homem se distingue das outras formas deexistência porque tem a possibilidade da fala, ou porque é o único animal quese põe de pé, ou ainda porque é o único capaz de pensar, de refletir... Todasessas respostas, muito embora verdadeiras, são insuficientes para caracterizara grande distinção entre o homem e as outras formas de vida, dentro danatureza. O fator distintivo determinante é o trabalho; o que torna o homem umaforma de vida sui generis é acapacidade de produzir.O trabalho é a aplicação, sobre a natureza, da energia do homem, diretamente oucomo prolongamento do seu corpo através de dispositivos mecânicos, no propósitode reproduzir a sua vida e a do grupo. Alguns afirmariam que outros animaistambém realizam trabalho, quando de alguma forma utilizam e modificam anatureza, mas o homem é o único que reflete sobre a realização de seu trabalho.Antes de se lançar ao processo produtivo, ele pensa, raciocina e, de algumamaneira, prevê o resultado que terá o seuesforço. (Cf.SANTOS, Milton. Do físico ao humano. Do natural ao artificial. GeografiaFísica, Geografia Humana. In: ____. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo,Hucitec, 1988, cap. VII, p. 87-8).
Prosseguindo em suas considerações sobre otrabalho humano Milton Santos acrescenta as características do trabalho humanodiferenciando-o da atividade dos animais inferiores e colocando as exigênciasdo trabalho humano ao entrar em relação com a natureza:
Na sua relação com a natureza, o homemnão tem uma atitude de repetição, mas sim de invenção. Já os outros animais selimitam à simples repetição, no decorrer dos séculos. Ao repetir o gestoinicial, ele difere e aumenta o número de gestos, aprimora-se. O trabalho dohomem aumenta sua inteligência. E o trabalho é um processo de troca recíproca epermanente entre o Homem e a Natureza.
O processo de trabalho exige umaprendizado prévio, o homem necessita aprender a natureza a fim de apreendê-la.Quando aprende, apreende; quando apreende, aprende. A riqueza do ensinamento danatureza é proporcional à ação do homem sobre ela; quanto maior a troca com anatureza, tanto maior o processo de intercâmbio entre os homens. A relaçãoentre o homem e o seu entorno é um processo sempre renovado que tanto modificao homem quanto a natureza.
O homem é ativo. A ação que realizasobre o meio que o rodeia, para suprir as condições necessárias à manutenção daespécie, chama-se ação humana. Toda ação humana é trabalho e todo trabalho étrabalho geográfico.
Não há produção que não seja produçãodo espaço, não há produção do espaço que se dê sem o trabalho. Viver, para ohomem, é produzir espaço. Como o homem não vive sem trabalho, o processo devida é um processo de criação do espaço geográfico. A forma de vida do homem éo processo de criação do espaço. Por isso, a geografia estuda a ação do homem. (Cf.____. Do físico ao humano. Do natural ao artificial. Geografia Física,Geografia Humana. In: ____. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo,Hucitec, 1988, cap. VII, p. 87-8).
CARACTERÍSTICAS DA TERRITORIALIDADE HUMANA - O que vai caracterizar cada território é amaneira como cada comunidade se relaciona com o meio natural, as técnicasempregadas, as influências recebidas, o tipo de relações estabelecidas com ascomunidades vizinhas e etc.
Relações de boa vizinhança determinaramtrocas e influências recíprocas das mais variadas. Relações de confrontação edominação estimularam as técnicas de ataque e defesa do território e aimposição violenta de usos e costumes.
A propósito desta questão é muito expressivaa forma como Élisée Reclus se manifesta a respeito:
... As condições mais favoráveis aodesenvolvimento de um grupo humano, horda ou povo, consistem para esse grupo emviver em paz, mas não isolado, com freqüentes trocas de visita com seushóspedes, com relações ativas com seus vizinhos, cada indivíduo tendo, aliás,participação na terra e no trabalho. Não há razão alguma, então, para que aliberdade e o valor do grupo diminuam; este tem grande probabilidade de sedesenvolver normalmente e de progredir em inteligência e em moralidade. Aocontrário, quando uma sociedade se empenha em guerras encarniçadas, tem tudo atemer e fatalmente será atingida pela desgraça. (Cf.RECLUS, Élisée. Evolução da sociedade e da civilização. In: ANDRADE, ManuelCorreia de. (Organizador). Élisée Reclus. (coletânea). São Paulo, Ática, 1985,p. 102).
Há no território algo que se impõe àcomunidade como um valor unificador. É a consciência de pertencer ao territóriovivido, construído e partilhado não só com os contemporâneos mas também com osantepassados.
Essa auto-imagem que a comunidade tem de simesma, com o seu meio ambiente, com seu presente e com seu passado, é o queleva à consciência geográfica.
Consciência geográfica tem o sentido de umsaber integrado socialmente, uma ciência compartilhada que cada indivíduo ecada comunidade tem de si mesma.
É através dessa consciência geográfica que ohomem se relaciona com tudo que o envolve: a natureza e a sociedade. É atravésdesta consciência que o homem se situa diante da natureza, da sociedade e davida; é por ela que orienta e dá sentido à própria existência.
A existência humana será marcada por essacontingência geográfica. Cada lugar tem as marcas das pessoas que ali nascem.Cada pessoa é natural de algum lugar.
Em seu apreciado romance The Heritage,Siegfried Lenz (1985) se pergunta se não deveríamos suprimir as conotaçõesruins da palavra “terra natal” (homeland) e, em troca, lhe dar uma espécie depureza? É assim que ele formula a resposta: “Para mim, a terra natal não éexatamente o lugar onde nossos mortos estão enterrados; é o lugar onde temos nossasraízes, onde possuímos nossa casa, falamos nossa linguagem, pulsamos os nossossentimentos mesmo quando ficamos em silêncio. É o lugar onde sempre somosreconhecidos. É o que todos desejamos, no fundo do nosso coração: sermosreconhecidos e recebidos sem nenhuma pergunta. (Cf.SANTOS, Milton. Territorialidade e cultura. In: ____ O espaço do cidadão. SãoPaulo, Nobel, 1987, p. 63).
Nesta linha de reflexão de demonstrar asinfluências do meio geo-histórico sobre a formação da personalidade e da identidadedos povos trago aqui o que nos diz o pensador brasileiro Miguel Reale:
Ora, a problemática do ser humano oudo ser das nações, como entidades biopsíquicas, sociológicas, econômicas, étnicas,históricas etc... enriquece-se dia a dia, multiplicando as esferas daspesquisas positivas, que, ao depois, se entrelaçam e se esclarecemreciprocamente. Mas há algo na dramaturgia dos homens, das raças, dos povos,das nações, que debalde psicólogos e geógrafos, (grifo nosso) fisiologistas eetnólogos tentarão explicar: é aquilo que assegura a cada homem e a cada povo asua singularidade, a sua inconfundível e intocável personalidade. Por que sou oque sou? O porquê estas e não aquelas inclinações e tendências marcam o meu serpessoal, e estruturam e singularizam o meu eu, é um dado para a problemática deminha experiência, mas que invoca e pressupõe o mistério insondável de meu serdistinto e diverso, irreversível e inefável no cosmos.... O certo é que, assimcomo os homens, também os povos se distinguem uns dos outros, por mais que osprocessos tecnológicos acelerem o ritmo da massificação e da uniformidade. (Cf.REALE, Miguel. A filosofia como autoconsciência de um povo. In: PAIN, Antônio.(Coordenador) Liberdade acadêmica e opção totalitária. Um debate memorável. SãoPaulo, Artenova, 1979, p. 163-4).
Na verdade essa questão da individualidadedos lugares está nas origens da Geografia. Desde a antiguidade clássica que osgeógrafos procuram identificar os traços naturais e sociais das regiõesestudadas. Heródoto e Estrabão são os precursores. Modernamente, é Vidal de LaBlache que teorizando sobre a obra geográfica do homem afirma:
Uma individualidade geográfica nãoresulta apenas de simples considerações geológicas e climáticas. Não é umacoisa dada de antemão pela natureza. É necessário partir da idéia de que umaregião é um reservatório onde dormem energias que a natureza depositou emgerme, mas cujo emprego depende do homem. É ele que dominando-a para seu usodetermina sua individualidade. Ele estabelece uma conexão entre os fatoshistóricos dispersos; os efeitos incoerentes decircunstâncias locais ele substitui poruma participação sistemática de forças. É então que uma região se precisa e sediferencia e se torna com o tempo como uma medalha cunhada com a efígie de umpovo (Cf. VIDAL DE LA BLACHE, Paul. Tableau de la Géographie de la France (1903). In:GOTTMANN, Jean. La politique des États et leur Géographie.Paris, Armand Colin, 1952, p. v).
Prosseguindo nesta linha de mostrar adimensão geográfica que assume o trabalho humano na produção do território équase impossível distinguir o ato de produzir e produzir espaço.
Produzir e produzir espaço são doisatos indissociáveis. Pela produção o homem modifica a Natureza Primeira, anatureza bruta, a natureza natural, socializando, dessa forma, aquilo queTeilhard de Chardin chama de “ecosistema selvagem”. É por essa forma que oespaço é criado como Natureza Segunda, natureza transformada, natureza socialou socializada. O ato de produzir é ao mesmo tempo, o ato de produzir espaço. (Cf.SANTOS, Milton. O espaço total de nossos dias. In: ____. Por uma Geografianova. São Paulo, Hucitec, 1978, cap. XV, pag. 163).
Na verdade, todas as dimensões da culturahumana, a literatura, a arquitetura, o esporte, a música e etc.... assumem edenunciam os traços e influências do meio geo-histórico em que são produzidas.Pela sua força expressiva e contundente que ele contém para robustecer o queestamos querendo provar me permito transcrever aqui, com o devido destaque, otestemunho de um dos mais ilustres brasileiros que muito contribuiu para aformação da identidade cultural do povo brasileiro no concerto das nações:
Sim, sou brasileiro e bem brasileiro. Na minha música eu deixo cantar os rios e os mares deste grande Brasil. Eu não ponho mordaça na exuberância tropical de nossas florestas e dos nossos céus, que eu transponho instintivamente para tudo que escrevo". Heitor Villa-Lobos.

Uma vez que o uso indiscriminado eindeterminado do conceito e do termo espaço na literatura geográfica pode levara polissemia ou o que é mais grave ainda a equívocos, julgamos ser necessáriocolocar algumas observações a esse respeito.
Os termos e os conceitos podem ser usados de maneira unívoca ou equivoca ou de maneira polissêmica ou monosêmica.
No caso do termo e do conceito espaço doponto de vista da filosofia temos vários entendimentos dos quais vamos destacarapenas três que julgamos interessantes para o nosso trabalho de geógrafo.
OCONCEITO DE ESPAÇO NA FILOSOFIA - O primeiro é o entendimento clássico dafilosofia aristotélico-tomista segundo a qual espaço é uma propriedade damatéria ou seja o espaço tem uma existência in alio (em outro) é umapropriedade dos seres corpóreos, é a dimensão extensiva dos seres corpóreos. Oespaço segundo esta corrente filosófica não tem existência própria.
O marxismo acrescentou apenas uma expressãoque revolucionou o conceito de espaço. Segundo o marxismo espaço é uma propriedade da matéria em movimento. Esta expressão emmovimento revoluciona o conceito de espaço mas não lhe dá existênciaper se, (própria), o espaço continua sendo entendido como uma propriedade damatéria. O que tem existência própria é a matéria que é considerada como um serdinâmico, em movimento, e como tal tem uma dimensão extensiva, espacial. Oespaço no entendimento do marxismo também não tem existência própria, autônomaé uma propriedade da matéria.
O neo-tomismo desenvolve uma argumentaçãoafirmando que uma coisa pode ser real de muitos modos, não é somente realaquilo que existe de per si, autonomamente e independentemente, enquantosubsistente. Cada ser, tem relações reais com os outros seres existentes eestas relações têm sua peculiar realidade e existência. Entre o escultor e omármore por ele esculpido, entre o médico e o paciente entre o pai e o filhoexiste qualquer coisa de real além dos dois termos da relação fundamentado emum ato em que um comunica e o outro recebe.
Não é real somente o escultor ou somente omármore: é real o ato mediador constitutivo da relação, a chamada actio-passioque une dialeticamente um ao outro.
Segundo o neo-tomismo a realidade do espaço édeste tipo: uma realidade de relação fundamentada em um ato que une e separa aomesmo tempo o agente e o paciente os quais possuem além disso o esse in se e oesse ad aliud, o ser em si e o ser para o outro, como referência ontológica. Arealidade do espaço é a realidade das relações que pode ter diversossignificados.
Estas considerações levaram alguns geógrafosa negar o espaço como objeto da Geografia pois que não podem admitir que umaciência tenha como objeto uma coisa que não tem existência própria.
O que defendemos é que falar de espaço semacrescentar uma determinação ou qualificação não tem sentido em Geografia. Porisso sempre que na literatura geográfica encontramos o termo espaço, geralmentedeve-se entender como «espaço geográfico», ou seja aquele espaço construídopelo trabalho humano, o território.
A ação humana se dá sobre a natureza. Da açãohumana sobre a natureza resulta o território. O território como ser materialconcreto tem uma dimensão extensiva, espacial. Espaço geográfico, portanto, é adimensão extensiva do território.
Portanto, a Geografia ocupando-se da ação dasociedade humana sobre a natureza tem intrinsicamente uma dupla dimensão. AGeografia deve estudar concomitantemente a natureza e a sociedade para melhororientar a ação humana nessa relação recíproca.
Disso resulta que a Geografia deve consideraras questões éticas da sociedade, da ação humana; e as questões técnicas danatureza.
O par dialético da sociedade é a natureza enão o espaço. Desvendar esta síntese tem sido ao longo do tempo a grandepesquisa dos geógrafos.
O CONCEITO DE ESPAÇO NA FILOSOFIA MODERNA - A partir de Descartes até Leibniz o espaço se torna uma idéia inata do espírito humano. Daí foi fácil a passagem para Kant que faz do espaço uma intuição pura, a priori da sensibilidade, condição e pressuposto de toda a experiência.
Como a filosofia católica havia subordinado o espaço totalmente ao ato criador de Deus, assim Kant subordina o espaço totalmente ao sujeito humano. Isto pode-se entender como um desenvolvimento lógico do mesmo pensamento cristão, porque a subordinação a Deus, é entendida de modo absoluto, à luz da criação e a subordinação ao homem de modo relativo.
O espaço-intuição a priori, de valor absoluto é necessário e segundo o pensamento de Kant, é o espaço euclidiano de três dimensões. O homem segundo Kant, não pode intuir os fenômenos da experiência externa e conseqüentemente não pode pensá-la, senão na necessária visão do espaço em três dimensões.
A geometria de Lobatchevski (1793-1856) e de Riemann 1826-1866), negaram a unicidade do espaço euclidiano, e portanto o valor absoluto da intuição a priori: a geometria de quatro e mais dimensões demonstrou que o homem é capaz de pensar um espaço de quatro dimensões ou até mais dimensões.
A geometria de quatro dimensões encontrará plena aplicação na teoria da relatividade, onde o tempo entra exatamente como a quarta dimensão constitutiva dos eventos cósmicos.
A importância da teoria de Einstein consisteno fato de que assume em si e implicitamente valoriza tudo o que já foi ditosobre o espaço na história da filosofia. Em primeiro lugar resgata o significado realista colocado em evidência pela filosofia aristotélica e cristã. Em segundo lugar chama atenção para a inseparabilidade do espaço dos seres físicos, e, porfim, mas igualmente importante, a correlação do espaço/tempo à pessoa humana, ao ser humano.
Para Einstein, o universo não é plano como na Geometria de Euclides, conhecida desde a Antigüidade, nem o tempo é absoluto, como na física de Isaac Newton. Em vez disso, espaço e tempo, na relatividade geral, combinam-se em um espaço/tempo curvo. Enquanto para a geometria clássica, euclidiana, a menor distância entre dois pontos é a reta, na teoriade Einstein, é uma linha curva, chamada geodésica.
Fica claro que a teoria da relatividade conecta intimamente a temporalidade da historia humana com a historicidade do universo.
O espaço, portanto, não é o todo infinito oucaótico da antiqüíssima cosmogonia de Orfeu, nem o receptáculo-matéria dePlatão, nem o espaço-nada do mecanicismo atomístico. É qualquer coisa quepertence aos seres corpóreos, a sua função localizante em relação aos outrosseres.
CONCLUSÃO - Para o geógrafo físico como para o geógrafo humano, enfim, para a humanidade,interessa concluir que se o homem é capaz de medir a natureza do universo, ouseja, se o homem é capaz de medir o espaço dos seres corpóreos, se é capaz depenetrar na sua estrutura atômica, ontológica e fenomenológica, e dar asmedidas exatas do território construído pelo seu trabalho isto significa queexiste dentro do homem um espaço interior mais vasto que o espaço exterior queo projeta para o infinito. É uma superioridade não apenas psicológica outeórica, mas concreta e prática como demonstra a sua capacidade efetiva deconquistar a imensidão exterior do universo, por meio da superior imensidade doseu espírito, da sua inteligência e da sua cultura.
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